segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Funambulismo

Ilustração de Troche

Eu quero andar na bamba, 
E sentir a corda a vincar-me os pés.
Nela caminhar, pausadamente,
pousando no ar os braços abertos
em gestos suaves e doces.
Arquear o pé delicadamente, as unhas pintadas de branco pérola,
tal qual uma bailarina,
mas sem fazer um grand jeté.
Ao fundo há uma música, só para criar expetativa,
apenas um piano choroso, alegrando-se a cada acrobacia,
para condizer com a seda rosa que visto.
O coração bate-me do peito até à garganta,
Porém, tudo se equilibra numa gloriosa harmonia.
Mas alguém do público começa a chorar uma chuva miudinha,
e, ao lado, outro sopra uma aragem impaciente,
tudo se me cola ao corpo lentamente.
Caio na erva molhada,
e em cima de mim o olhar de todos.
Todas as dores do mundo correm,
para me vir esmagar contra o solo.
Cravo os dedos na terra,
chego a pensar em não mais abrir os olhos
e dissolver-me nela.
Mas não!
Que se animem todas as forças conspiratórias
que atuam em mim!
Que é a vida se não cair e levantar?
Pois bem, ponham a corda mais alta!
E que o vento a faça ondular violentamente!
Porque enquanto o sol em mim brilhar,
jamais darei ordem para o espetáculo terminar!


11.10.2016

sábado, 9 de abril de 2016

Alice

Mulher sentada, Almada Negreiros

A Alice foi-se embora!
Foi-se embora escondida na sombra das nuvens,
e levou vestido os dias de ontem como gostava de os ter vivido.
Amigos, a Alice foi-se embora.
E só deram pela sua falta ao jantar,
quando, às oito horas, a mesa ainda não estava posta.
Nunca mais ninguém a viu.
A Alice foi-se embora depois de ter parido três filhos
e de os ter dado às suas vidas.
Foi-se embora depois das gargalhadas à mesa
e das maçãs do quintal caírem de maduras.
Mãe, a Alice foi-se embora.
Nunca mais ninguém a viu.
Só deram pela sua falta quando, à hora de dormir,
viram as camas desfeitas.
Quando o lixo entulhado não deixava abrir as janelas.
E quando o pó se confundia com a nossa própria pele.
A Alice foi-se embora depois de, tão carinhosamente,
eu lhe ter aquecido a cara com a minha delicada mão.
Foi-se embora porque se despiu diante do espelho e não se viu nua.
Foi-se embora porque se queria ver nua.
E agora, a aurora já não é fresca e húmida,
nem a noite amanhece com a mesma delicadeza feminina.
O mundo não mais será como fora outrora.
Resignem, a Alice foi-se embora.



Rita Fé, 8 de Abril de 2016