sábado, 26 de setembro de 2009

Retrato (o apelo)



Nunca o espelho lhe mostrara tal imagem





Ela sai todos os dias de casa, com o brilho de quem procura a plenitude. Uma pessoa normal, mas nem por isso banal, caminha rápido, fizeram-lhe os passos firmes e apertados, embora quem contempla-se a obra-prima com atenção percebe-se que estava longe de ser segura de si. Na cara, tinha ainda os olhos cansados e esse era o maior erro do artista, ainda tentaram mudar-lhes a cor uma vez, mas viram a tentativa inútil quando perceberam que não havia tinta, verniz e pincel que os fizesse brilhar… tinha um sorriso nos lábios, sorriso esse que lhe fora desenhado por alguém que achara que sorrir era uma necessidade urgente, a Salvação e tendo uma visão meio romântica da vida, Ela acreditava profundamente que quem lhe desenhara o sorriso o fez com amor.
A sua pele foi pintada de uma cor meio clara, meio escura, e quem a pintou sabia que o ideal era o transparente.
As mãos, que outrora foram calejadas, secas, ásperas, velhas e inchadas são agora pequeninas, são novas, são brilhantes, são macias e, melhor de tudo… são criadoras, embora quem as desenhou, saiba que o ideal, é e será sempre o modelo original, sempre puro, sempre verdadeiro.

Um “entra e sai de artistas” literalmente!

Apenas a alma permanecera tal e qual como nasceu, Ela tinha-a escondida debaixo da cabeceira, onde todas as noites poisava a cabeça, assim, poderia sentir o seu perfume antes de adormecer e de certo que ninguém se atreveria a roubar-lhe a mais pura virtude do Ser e adultera-la a seu belo prazer.
Isto sabia-o ela porque lho diziam, pois nunca tal coisa o espelho lhe mostrou, a não ser a alma a despir-se do passado lentamente, peça por peça, ao seu ritmo, talvez em câmara lenta e de vez em quando interrompida por um atropelo de ideias escondido atrás de tanta cor, de tanta luz artificial…
Por um pesadelo…
Por uma insónia…
Pelo nó na garganta…
Por quem lhe desenhou o sorriso…
… e Ela acredita que quem lhe desenhou o sorriso o fez com o coração…
…e Ela acredita que foi o coração que fez esquecer a pessoa que lhe desenhou o sorriso que o Sol não nasce em vez da Lua, que a seguir ao Inverno vem a Primavera, que o abismo se pode atravessar de mãos dadas e que de mãos unidas nasce um sorriso espontâneo.
Afinal que cor deram ao perdão?

Foi assim que lhe fizeram o retrato: o coração bate-lhe fora do peito, as lágrimas correm-lhe para dentro e a sua gargalhada mais sonora nunca lhe chegou aos ouvidos…
Mas dizem-na bela...
Mas dizem-na forte...

Sei isto porque foi o que me disseram, pois nunca tal coisa me mostrou o espelho a não ser o meu reflexo original, o esboço do destino, a obra-prima do Tempo… arrepiasse-me a pele quando essa imagem me pergunta:
-Quem és tu?
E eu respondo-lhe diariamente:
-Eu sou tu… enquanto não me levarem a alma!
Saio todos os dias de casa, com o brilho de quem procura a plenitude. Uma pessoa normal, caminho rápido, pois fizeram-me os passos firmes e apertados. Na cara, tenho ainda os olhos cansados de repetir quase obsessivamente:
«Enfeitem-me por fora, mudem-me as cores, troquem-me os sentidos, mas nunca impeçam a minha Alma de ser Alma!»


Absolutamente inútil!




Rita Oliveira
26/09/09