quinta-feira, 20 de março de 2008

Corredor(a vida corre!)


Era grande chato e comprido. E nele apenas caminhava uma criança inocente (que de criança só tinha mesmo a inocência) e uma criada velha que estava encarregue de levar a miúda até ao local desejado.

De pulso firme a criada agarrava a pequenita pelo ombro. Criança de poucas falas e de muita timidez mas nunca de má- educação!

A pequena sabia-o, ela sabia porque estava a caminhar naquele corredor, e sabia para onde a levavam.

Parecia não ter fim, aquela “estrada”.
Havia porta dos dois os lados.
Quando era ainda mais miúda, enroscava-se nos lençóis e fechava os olhos, á espera que alguma coisa sai-se de baixo da sua cama ou de dentro do seu guarda-roupa. Mas nunca saiu nada! E o medo foi desaparecendo e tudo teve um fim quando num momento de coragem abriu as portas do guarda-roupa e viu que não estava nada lá dentro... apenas ar.

Com o passar do tempo foi aprendendo que na vida há sempre portas por abrir, e ao serem abertas não se descobrem monstros, mas sim mais portas á espera de serem abertas, e assim percorre-se um caminho(como um corredor, talvez), temos de ser nós a escolher as portas que queremos abrir, porque é de nós que depende a vida, há sempre portas que ficam fechadas e nunca se abrem, há outras que têm mesmo de ficar fechadas e prova disso era o Senhor Joaquim que nunca foi muito dado a estas filosofias, gostava de assustar toda a gente do parque e ninguém lhe fazia frente.

“Fazes mal em não ter medo de mim! Sabias?” disse-lhe o Senhor Joaquim com a cara muito próxima da dela. E pronto, o problema estava resolvido, foi fácil entender que enquanto a boca dizia” Todo o mudo tem de ter medo de mim”, os olhos gritavam “Todo o Mundo tem de ter medo de mim, porque eu tenho medo do Mudo todo!”.

Talvez tenha sido uma porta que devia de ter sido aberta, e não foi, por medo se calhar. Mas uma vez admitido este facto foi fácil criar laços entre idoso e criança.

Mas ela estava ali agora, a seguir um caminho que não era o dela.

A vida sempre fora chata e uma porcaria, por ser sempre o mesmo, porque gritar, discutir, a constante violação do seu espaço era já uma espécie de regime diário, com o tempo tudo ficou monótono, ficou tudo muito igual e não havia nada que marcasse a diferença.Mas ela fazia toda a diferença.

Tinham chegado á porta desejada. Os pensamentos e recordações foram parar a uma gaveta bem fechada.

Ela tinha de abrir uma porta que não tinha de ser aberta, pelo menos, não por ela.

A criada olhou para a pequenita pela primeira vez.
Haviam ainda tantas perguntas e nenhuma resposta.

Devia de ter uns dois ou três anos quando se atreveu a perguntar “O Sol está no céu porque? Morreu?”, mas não tardou muito para alguns começarem a rir, outros não acharam assim tanta piada “ Que pergunta parva, estúpida, vê lá se quando abrires a boca outra vez dizes alguma coisa de jeito para variar!”

“O que é que tinha feito de mal?”.

“Porque falam assim?”.

“Afinal o Sol está no céu porquê?”.

Não paravam de rir.
Com dois ou três anos uma criança no mundo jurou a si própria que nunca mais ia abrir a boca para perguntar o que quer que seja. Havia de conseguir encontar respostas sozinha! Mesmo que as portas lhe fossem trancadas.
Entrou! Sentou-se á frente de um homem, que nunca levantou os olhos para olhar para ela.

“Como te chamas?”

“Qual é o teu nome?”


O silêncio.

A voz infantil a dizer o seu nome, as lágrimas que caíam pela sua cara de menina, o medo de se tornar “prisioneira” de uma vida feita por outros, e a dor que teve de sentir para entender que atrás de uma porta encontra-se algo mais que outra porta, encontra-se algo que é doce e amargo, algo que nos faz rir e chorar, que dá a dor mas também a alegria, e que não era ela que devia estar ali!

Que é preciso penar para aprender;

Que viver não é apenas existir;

Que é preciso procurar aquilo que aumenta o coração.

Quem quiser saber como é que ela o aprendeu:
“Foi só caminhar no corredor, chegar ao fim, e abrir a porta!”.


Rita Oliveira
20-03-2008

sábado, 15 de março de 2008

A Invenção do amor


Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com caracter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem e uma mulher um cartaz denuncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade

É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas Sobretudo
protejam as crianças da contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas
...
É possível que cantem
mas defendam-se de entender a sua voz
Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo A brisa das montanhas
Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta
...
Procurem a mulher o homem que num barde hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notíciade que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua



Daniel Filipe


(boa aula de Língua Portuguesa)

sábado, 1 de março de 2008

Sebastião

Ainda me lembro daquele dia, tinha apenas uns centímetros de cumprimento e não se cansava de girar sobre si mesmo. Deram-mo no dia em que completei os meus dez anos de idade. Lá vinha ele no aquário minúsculo e redondo, lá vinha ele, o meu peixinho vermelho.


Oh Sebastião! Maldito o dia em que tive de ir buscar o pão, naquela manhã de nevoeiro... Aposto que nunca me teria lembrado de tal nome!


È engraçado! Foram precisos quatro anos para eu prestar atenção, foi preciso estar sozinha naquele dia para ver “o outro lado”.



Estava ali o Sebastião, agora já maior, com um aquário enorme, rectangular, sozinho.
Pensei:


“Nunca deve ter saído do aquário!” Lógico!

“O rio? Ele não conhece o rio!” Claro que não!

“E o mar? Aquela imensidão bela!”


Comecei a sentir pena dele! Do meu Sebastião, que se divertia consigo mesmo, limitado por quatro míseras paredes de vidro, com apenas umas meias dúzias de litros de água, movimentava-se graciosamente, completamente alheio ao que estava por de trás das suas paredes transparentes, à sua ignorância, ao desconhecido.
Não sabia que havia “algo mais”, ou se sabia, parecia não se importar!


Pena dele? Era eu que estava ali, sentada numa mesa a sentir pena de um animal irracional. EU! Igual a milhares, igual a milhões, igual a toda a gente!


Temos o que nos é preciso, mas sabemos que existe algo mais! E falta sempre algo!

Hoje conseguimos o que achávamos que era preciso ontem, amanhã isso já não chega e há que ter mais, e falta sempre algo!


Os pobres querem ser ricos, os ricos querem ser ainda mais ricos, abundam de riqueza, mas isso só não chega! Há que ter mais! Mas vai sempre faltar algo!


Insatisfação.



Necessidade de ter, nem que seja só para dizer que se tem.


Pena dele? De um peixinho vermelho, que se chama Sebastião por grande ironia do destino (e minha!), que gira sobre si mesmo, que se diverte consigo próprio e que vive feliz com toda a sua irracionalidade?


Pena dele?

De mim?

Do mundo?


Não sei!



Rita Oliveira
29-02-2008