quarta-feira, 24 de março de 2021

O último poema

Estou deitada ao fresco debaixo de uma árvore e diante de mim está um campo de erva dourada. Ao longe vejo uma sombra e o seu dono. Contraio os olhos, quero ver quem é, se é gente que eu conheço. E, olhem, não aguento em mim de espanto: Não é que sou eu que ali vou? Livre de correntes que, nunca existiram, do fardo, que nunca existiu, da dor, que nunca me pertenceu. Vejo agora que nos estamos a despedir, a minha sombra e eu, e vamos cantarolando qualquer coisa que me deixa feliz, enquanto caminhamos com passos bailarinos na direção do pôr do sol.

terça-feira, 24 de abril de 2018

AEMINIUM


Margaret Bourke-White - Hats



















Na cidade que se ergue junto ao rio,
tumultos citadinos emergem ruidosos
ao romper da madrugada.
E numa rua apertada de tempo
todos caminhamos em direções desiguais.
Fumos de formas disfóricas
dissolvem-se no céu azul novo.
E vozes meigas, histéricas, chorosas,
gargalhosas, indiferentes, sonolentas,   
em conversas paralelas aos meus pensamentos,
misturam-se com o ruído dos carros raivosos
e o cheiro do pão quente que sai das padarias,
numa tímida ode citadina.
Numa rua apertada de espaço,
numa manhã que pede calma,
que se boceja e espreguiça
sem ainda ter posto os pés no chão,
todos passamos às nove da manhã,
à espera das seis da tarde.
Que vida esta, em que ansiamos que o tempo passe,
mas nunca queremos envelhecer.
Todos passamos em atropelos
todos contornamos o pedinte, a cauteleira, o promotor,
e o homem que ainda agora se agachou para atar o sapato,
com a mesma facilidade com que gostaríamos de contornar o que nos inquieta.
Que vida esta, onde sentimos pressa de chegar,
mesmo sem saber para onde vamos.
Os quiosques abrem as janelas,
e põem as novidades de hoje a enxugar.
E hoje há novas conquistas, novas leis e novas regras.
E algures entre as princesinhas de Espanha
e a denúncia de um político corrupto,
uma manchete grita em letras gordas:
“Esgotámos todas as formas de sermos felizes”.


Rita Fé

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Amagogía

Há bolo de mel
nas mãos da rapariga
ali, parada, à beira de todas as estradas do mundo.
Há seiva correndo,
na árvore que plantámos,
no quintal do nosso tempo.
Nunca soubemos que árvore era aquela.
Nunca soubemos que nome lhe dar.
E estão histórias de cordel,
a secar,
naquela casa,
onde as paredes são de uma cor
que ainda não foi inventada por ninguém.
E só nós é que podemos ver essa cor,
e essas paredes e essas histórias e essa casa e essa rapariga.
Porque só nós é que crescemos dentro delas.
E nos tornámos nelas.
Porque nesta vida, como toda a gente diz,
há que tornar-se sempre em alguma coisa,
de preferência, que nos distinga dos outros.
(ainda que, no fim,
tornemos todos ao mesmo sítio).

sábado, 9 de setembro de 2017

"Dalila aprendeu a ser assim, a agir, a ser e a estar de modo a que não esperassem nada de si. Como o aprendera e porquê, a isso ela não sabia responder. Mas por sorte, sei mais sobre Dalila do que ela própria e, por isso, posso explicar-vos. Dalila, órfã de mãe, frequentemente esquecida no balcão dos botequins, vivia com o pai, que só ocasionalmente conseguia ser pai, apesar de amar a filha. Mas que coisa estranha é essa, o amor... Se o amor fosse um homem teria, seguramente, mil caras diferentes e confudir-se-ia facilmente no meio de uma multidão onde deambulam outros homens. Onde vagueiam, errantes, o medo, o desespero, a frustração, a raiva e outros tantos parentes de gala. E ainda bem que assim é, caso contrário, deixaríamos de reconhecer em nós mesmos o que nos torna humanos. Um dia, Manuel, que amava Dalila, levantou-lhe a mão. As lágrimas que a menina chorou arderam-lhe na face, no sítio onde a mão injusta lhe caíra. E foram lágrimas dor e de vergonha, lágrimas de quem não conseguia compreender a dor por trás da força bruta que se insurgira contra si."

In "Dalila foi à Guerra"

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Troca-me isso por imagens


Diz que a culpa não é minha!
Diz que não é culpa minha.
Não é minha a culpa.
“A culpa não é tua!”
“Não é culpa minha.”
Fui eu que a fiz em catadupa,
é minha, a culpa,
e afoguei-me nela.
Numa catadupa,
num ciclone
de culpa vivi
porque
em mim
deixei-a
viver
eu.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Artes Plásticas



É de melancolia 
Que é feita a arte?
Também.
E de saudosismo
de dias mais felizes
e noites quentes.
De dias que não se pareçam com dias,
e de histórias que não se pareçam com a gente.
Por isso é que hoje eu acordei
e agarrei o céu,
para o meter em azulejos contentes.
Desenhei-o com a ponta de um dedo,
e pintei-o de cores diferentes.


Rita Fé

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Leonoid Afremov - Nostalgic

A minha paz é grande e dourada,
estende-se sob a areia da praia
e dela extravasa-se um fulgor que me aquece o peito 
em dias de chuva triste.
Os dias de chuva triste lavam-me o rosto 
da poeira das quedas, das cicatrizes do afogo.
Do meu rosto, os meus lábios sorriem para mim.
E por os meus lábios sorrirem para mim,
os meus olhos acedem-se como duas lâmpadas
que iluminam o caminho a dois amantes discretos.
E o caminho dos dois amantes discretos,
Não é mais do que as linhas da minha pele,
que se enlaçam, entrelaçam e se entrançam.
Na minha pele nascem pequenas flores de primavera.
 E quando nela não cabe a alegria de eu ser tanto,
eu danço.

Rita Fé